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Faz um bom tempo que não posto nenhuma história nova por aqui. Melhor dizendo, eu praticamente NÃO posto nenhuma história no blog, rsrs. Por esse motivo estou começando a escrever alguns contos que serão postados regularmente. O objetivo é libertar um pouco minha escrita e extravasar ideias que ficam de molho por causa da total dedicação ao meu livro. Então acho que já é hora de agitar um pouquinho as coisas. Boa leitura.

Realidade imaginária

As mãos e os dedos trabalhavam animando os objetos.
Aos olhos de um adulto, mero e fútil costume, esquecido e largado em lembranças passadas mantidas apenas para completar seu perfil quando referente aos primeiros anos de sua vida. Tais objetos não eram nada menos que o despertar de um saudosismo emaranhado em memórias empoeiradas que a pessoa adulta não acredita serem mais úteis.
         Bonecos. Brinquedos que muitos, com certeza, subestimam o quanto podem fazer, não só para a mente humana, mas também ao espírito. E isso só os adultos mais atentos, bem poucos, e as crianças, todas elas, sabem muito bem.
         Dentre essas crianças, um singelo menino chamado Mateus, de cabelos escuros e ralos, via com seus olhos castanhos sua mão mexer os finos braços de um boneco – era um homem de terno e gravata de cabelos amarronzados e barba bem feita. Além deste, havia outros bonecos, bem distintos, dispersados pelo chão gelado que parecia não incomodar os joelhos do garoto. Sua mente estava tão atarefada com algo de suma importância que uma simples indisposição de temperatura era insignificante; poderia estar ajoelhado num lago congelado que não iria se incomodar. Nenhuma inconveniência no mundo lhe privaria de sua brincadeira.
         Ninguém além do próprio Mateus poderia descrever o que se passava em sua cabeça enquanto os bonecos, em algum mundo fora da realidade e existente apenas dentro de sua mente, ganhavam vida e montavam o que poderíamos chamar de uma história. Sim, uma história… criada pela imaginação fértil do menino, e nenhum adulto poderia fazer melhor. Afinal, adultos se preocupam com coisas “mais importantes” do que sentar e brincar com bonecos, se preocupam com a realidade, e somente esta importa.
         Por isso Mateus aproveitava cada segundo de sua brincadeira. Ele era o limiar entre a fantasia e a realidade, um ser fantástico que conseguia unir objetos concretos e jogá-los num plano surreal, fazendo uma rica, misteriosa e fascinante mistura de dimensões que somente a imaginação de uma criança seria capaz de executar.
         Porém, Mateus conseguia ir mais além. De alguma forma, por mais que o seu brincar fosse habitual a um garoto de sete anos, ele conseguia transcender os limites da imaginação de uma criança comum. Ele era especial.
         Suas brincadeiras eram vívidas, e mesmo sozinho no quarto onde apenas habitava uma cama, um guarda-roupa e estantes com dezenas de bonecos, ele conseguia fazer daquele recinto um mundo tão impressionante quanto à realidade.

         Na sala da casa de Mateus, havia um casal adulto acomodado no sofá, olhando para a TV e esboçando sorrisos mordazes de satisfação. Era noticiada a morte de um político de cabelos amarronzados — sempre andava de terno e gravata e com barba bem aparada — assassinado por alguém desconhecido.
— Menos um — disse a mulher com uma risadinha.
— Sim, no entanto, ainda falta um. E com este último fora do caminho, serão plenas as chances de ganhar a eleição — falou o homem com uma voz confiante. — Não há como eles relacionarem todas essas mortes a mim. Foram fatalidades, lamentosos acidentes.
O casal aprumou-se e se dirigiu a um quarto da casa. Chegando lá, foi revelada uma criança que brincava distraidamente com seus bonecos, e que cessou seu divertimento quando os dois adentraram no recinto.
— Muito bem, Mateus. Você é um bom garoto — falou o homem e, em seguida, abriu a mão expondo um boneco masculino vestido socialmente. — Veja. Entrará um novo personagem em seu mundo. Sabe quais são as regras para brincar com ele. Eu o ensinei como vive uma personagem político. Então... quero que o mate. Morte acidental como de praxe. Um acidente de carro, de avião, helicóptero, ou até mesmo um problema de saúde, eu não sei. Faça o que sabe fazer melhor: use sua imaginação. 
E terminando com um sorriso afetado, ele e a mulher saíram do quarto. Mateus regressou novamente a solidão de seu universo, segurando um novo componente em sua mão. Sentiu-se triste. Já estava cansado daquilo. Por mais que seu mundo imaginário fosse divertido, uma crescente melancolia se apoderava dele. Não era isso o que ele realmente queria. Carecia de algo muito importante para sua felicidade.
Mateus pegou um DVD de um filme infantil e o colocou no aparelho. Apagou a luz do quarto como gostava de fazer para assistir TV (mesmo que só lhe fosse permitido assistir programas infantis ou recomendado pelos pais). Sentado no chão, pôs-se a observar cenas onde muitas crianças brincavam juntas. Uma lágrima escorreu.
— Eu quero amigos.
Pelo o que lhe contaram fora abandonado, recém-nascido, na porta de um orfanato. Poucos meses depois, adotado pelas pessoas que cuidam dele até hoje. Não sabia o motivo, mas seus pais não gostavam que se aproximasse de outras crianças. Ele não entendia o porquê, e toda vez que perguntava, diziam que ele podia se divertir com os bonecos, o que era uma verdade, pois realmente ele se divertia, mas por outro lado, não queria apenas aquilo, queria abrir suas asas para outros afazeres.
— Por quê? Porque não posso ser como os outros? — indagou-se, soturno. Pouco a pouco, seu rosto inclinou-se para derramar mais lamúrias. — Eu quero encontrar personagens reais, e não criá-los. Quero ser um personagem do mundo real, e não o criador de um fantasioso. Quero estar com outras crianças ao meu lado. Quero saber o que é verdadeiramente ser amigo de alguém.
Ele não conseguiu mais falar, permitindo que seu pranto tomasse conta daquele momento. A solidão era lancinante, e somente ele tinha total idéia do quanto sozinho se encontrava. Exilado num espaço negro onde não havia ninguém além de pessoas que se intitulavam seus pais, que concediam brinquedos para preencher o vazio dentro dele. Mas o vazio só aumentava, e a cada expansão, uma dor ininteligível era sentida. A dor de estar desamparado.
— Não chore — soou a voz de um menino.
Mateus, assustado, procurou pela criança e viu, ao lado da porta, um garoto da sua idade se aproximando. Parecia-lhe familiar. A imagem dele não soava nem um pouco estranha, como se o conhecesse de algum lugar. Entretanto, teve que perguntar:
— Quem é você?
— Quem sou eu? Ora, sou seu amigo — disse o garoto, sorrindo. — Eu sou Michel. Prazer em conhecê-lo.
Mateus estava com a boca entreaberta, ainda admirando o menino adiante. Não sabia como e porque, mas algo começou a adolescer dentro dele. Não era a sensação oca que tanto lhe afligia, muito pelo contrário, era transparente, permitindo que uma luz de sentimentos que se encontravam enfurnados atravessasse e se dispersasse por todo o seu espírito, preenchendo-o com uma inusitada dose de felicidade e bem-estar.
As lágrimas voltaram a cair, não por solidão, e sim por alegria. Ele molhou os lábios e perguntou ansioso àquele que podia chamar de amigo.
— Vamos brincar?
Este era o maior desejo de Mateus: encontrar um amigo e aproveitar tudo o que uma amizade como essa poderia lhe desfrutar.
— Sim — respondeu Michel. — Mas Mateus, você não tem vontade de descobrir algo muito melhor que ter amigos?
— Algo melhor que amigos? — indagou o menino. Não esperava uma pergunta dessas.  — O que pode ser melhor que amizade?
— Olhe com atenção. Eu vou brincar com você desta vez, e daqui a algum tempo você entenderá — disse Michel, mostrando três novos bonecos.

         Através da janela do carro, Mateus observava a paisagem rural meio apagada pelo entardecer nublado. O pai mantinha a atenção na estrada de pouco movimento, a mãe lia revistas de beleza no banco do carona, e o filho adotado permanecia quieto no banco de trás. A criança apenas se lembrava de sua última brincadeira, ouvindo a voz de Michel devaneando com seus bonecos.
“Três pessoas estão dentro de um carro que percorre uma estrada ao fim de tarde. Um casal e seu filho adotivo.”
         O silêncio da viagem foi quebrado por um assunto ali e outro aqui, e em poucos instantes os pais já estavam duelando verbalmente. Mateus já se acostumara a ouvir a discussão de seus pais. Os assuntos variavam: dinheiro, traição, viagens e outras coisas do tipo.  
“O casal começou a discutir e a criança não ligou. Era comum vindo de seus pais. Porém, desta vez, tudo sairia diferente. Enquanto o casal permanecia concentrado na discussão cada vez mais frenética, o homem, que dirigia o veiculo, não viu um enorme bloco de concreto, quase da metade do tamanho de um carro, parado na estrada.”
O veículo não freou a tempo e chocou-se com o bloco. Capotou na estrada várias vezes, em alta velocidade. Sua lataria ficou completamente amassada e irreconhecível. Quem visse aquela cena com certeza diria que ninguém sobreviveria.
“Um trágico acidente, mas olhe, alguém sobreviveu: uma criança.”
Mateus saiu do carro estraçalhado sem nenhum ferimento. Não havia ninguém na estrada, tudo estava na mais completa escuridão e silêncio. Olhou para o carro e soube que seus pais estavam lá dentro, mortos, mas nada sentiu por eles. Um sorriso malicioso brotou de seus lábios.
— Então era isso.
Mateus finalmente compreendeu o motivo de seus pais lhe deixarem num quarto a maioria das vezes, o motivo de não deixá-lo se aproximarem das outras crianças. Então todo o significado da sua vida veio até ele. Ele tinha que ficar sozinho para manipular seu poder, caso contrário, não funcionaria. E também não podiam descobrir seu misterioso dom. O mundo criado em sua mente usando os bonecos afetava o mundo real: se alguém morria nele, o mesmo ocorreria no real. Sua imaginação transcendia a realidade.
Michel era, na verdade, um amigo imaginário criado para abrandar sua solidão. Ele existia apenas na cabeça dele.
“E então, o menino percebeu algo muito intrigante. E uma grande mudança marcou aquele momento.”
— Que interessante — disse Mateus, tirando um carrinho do bolso e apertando-o na mão. Agachou-se no asfalto e começou a brincar. Então, imaginou o carrinho amassado e bradou: — BOOM!
O carro capotado adiante explodiu e voou metros no ar. Mateus observou, fascinado, o veiculo em chamas cair no campo ao lado da estrada.
— Eu sempre fui sozinho e não será agora que mudarei isso.
Acostumado à solidão, deixou que ela lhe abraçasse, e a ciência de seu poder lhe fez se tornar uma pessoa completa. Nada estava faltando, nem mesmo a infância que idealizara. Não permitiria que ninguém além dele editasse os eventos de suas criações imaginárias. Dessa vez, ele imaginaria seu mundo a seu modo, ele mesmo mudaria a realidade.  
— Será divertido brincar com as pessoas.

1 comentários:

Neyla Suzart disse...

Olá!!!
Excelente conto, adorei!!!Vc escreve muito bem, muito sucesso!
Seguindo seu blog, viu? Passa no meu? se gostar, segue :)
Bjoo ;*
http://coisasdemeninasarteiras.blogspot.com/